terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Cecília e os espinhos


Por dentro, Cecília chorava. Uma vida inteira cristalizada. Podia comprar todos os brinquedos, as bonecas e os amigos também. Não sabia o que era a dor, tinha tudo o que desejava, possuía, possuía. Não compreendia nem a fome, nem o frio, nem o sonho, nem o outro. Fazia tudo o que queria. Os anos se passaram e nada, nem a morte de algum amigo ou familiar a visitou para trazer-lhe certas reflexões necessárias à vida de qualquer pessoa ou ao menos para conhecer de perto um cadáver, o ser que adormece para o eterno e suas peculiaridades, a morbidez de um corpo sem alma, desfalecido. Quanto ao amor, muitas vezes também o comprou. Não falava nunca o que sentia, passava pela vida, apenas desfilando suas aquisições. Tinha a admiração de todos em sua casa. Personalidade forte, diziam. Será mesmo? Mas por dentro, ela chorava e como chorava, já que raramente suas lágrimas caiam em sua face. Nunca a vi chorar, nunca. Como é possível!? Lá no fundo ela queria conhecer a dor, sabia que o sofrer era importante em certa medida, sabia que o sofrimento era fecundo. Mas Cecília secretamente descobriu uma forma bastante particular de sentir dor, pois ela a desejava fortemente, sim, ela a queria, sobretudo para compreender o que ela não vivia, mas todos a sua volta experimentavam. A mãe de Cecília plantou junto ao jardim da casa, uma roseira, belíssima, como são todas as roseiras, eram rosas de um escarlate intenso. Foi ali junto ao canteiro das rosas escarlates que a menina começou silenciosamente experimentar a dor, através de um tormento físico revelador, a primeira vez aconteceu acidentalmente quando ajudava sua mãe a colher algumas rosas para enfeitar a sala de jantar, foi então que sentiu um espinho entrar-lhe na carne do seu dedo lentamente, um suspiro forte saiu de seu peito, logo sua mãe preocupou-se, perguntando-lhe : machucou-se Cecília? Não, estou bem, disse, então a ainda menina de dez anos. Cecília não conseguia esquecer aquela dor, ficava lembrando incessantemente do que havia sentido. A partir deste dia, ir até o canteiro de rosas e cravar espinhos em seus dedos tornaram-se uma prática, um hobby que preenchia seu coração, fazia-lhe entender o que era a dor, o que era sofrer, o flagelo durou toda uma vida, os espinhos eram sua droga, seu alucinógeno, fugia da vida que tinha,a mesma vida tão desejada pela maioria das pessoas, ter tudo o que se sonha, comprar tudo o que se vê, ir a todos os lugares, não chorar por nada.... Pergunto-me, se Cecília, entendeu assim a dor, que forma diferente ela encontrou para manifestar sua tamanha infelicidade. Na noite passada, ela agarrou uma das rosas, a arrancou do chão, e apertou contra sua mão com uma força brutal, até sangrar, deixando o sangue escorrer em seu braço, então percebeu que alguém estava vindo em sua direção, uma sombra, rapidamente molhou as mãos na piscina e novamente escondeu o que sentiu, disse a todos não saber porque havia um tom diferente na água. Na manhã seguinte saiu para comprar sementes de rosas, queria agora experimentar as brancas. Pensou que o branco talvez abrandasse sua dor, estaria Cecília cansada da dor ou do escarlate? Não sei, mas ela queria mais, queria sempre mais.

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